segunda-feira, 30 de junho de 2008

O último balão *

Quando o mundo tornou-se pequeno, quase imperceptível a olho nu, todas as grandiloqüências que me empolgavam, confundiam e extasiavam foram, aos poucos, se abrindo a uma nova percepção.

Engraçado como o afastamento e a distância trazem uma intimidade de outro porte: talvez, a verdadeira aproximação, a última compreensão! Nunca pensei que precisaria me perder na infinitude da desesperança para colocar as coisas na sua verdadeira dimensão.
Sempre quis ver, sem receios ou temores, para compreender o sentido de todo o que formava o existir. E agora, enquanto eu subia, subia, desaparecendo entre as nuvens, experimentado a verdadeira leveza do ser, procurava por todos os antigos elos, pela consistência dos amores, pela veracidade das memórias e encontrava a liberdade.

Era como se eu atravessasse um espelho sem me ver: um enorme espelho sem cor que me fazia entrar na grande escuridão do não-ser. Um espelho que não me refletia, que não me retinha numa imagem que, antes, eu acreditava ser eu. Um espelho vazio e gélido como os ventos da paixão não vivida, do encontro frustrado, do desejo ferido de morte.
Meus olhos, agora tornados chamas me guiavam na viagem rumo às lembranças perdidas. Agora, sim, olhando para baixo eu enxergava a vidas fragmentada em instantes: ilhotas de luz cercadas por pontos escuros, histórias inconclusas, algumas apenas prenunciadas, tudo condensado em pontículos brilhando que nem estrelas terrestres.

Foi, então, que num flash me voltou o som, as cores, a topografia e o cheiro da última festa da minha meninice. A festa de João, onde acordei para o amor, sem adivinhar as marcas que ficariam desse despertar entre fogueiras, sanfonas e cores dependuradas em bandeiras que celebravam, exultantes, o gosto do primeiro beijo que me roubaram. Beijo com gosto de cravo, canela, leites adocicados, não mais pela segurança do colo e calor maternos, mas pelas chamas de fogueiras imensas que avisavam o nascimento de algo inédito que queimava minha inocência e inaugurava um tempo de seduções e mistérios. Mistérios que as adivinhações feitas pelo pingar de vela em águas translúcidas repousando na bacia ou no escorrer do leite da bananeira ferida jamais anunciaram.

Tudo foi inesperado, inusitado, instigante. As tranças feitas nos meus cabelos escorridos e negros balançavam junto com a saia de enormes flores coloridas nos salões repletos dos sons de zabumba, sanfonas e triângulos. Damas com seus respectivos cavalheiros, rodopiando em balanceios, passeios na roça. Olha a chuva! Troca os pares! Alavante, anarriê! E a voz continuava dando os comandos da animada quadrilha. De repente uma mão segura com firmeza a minha cintura e um par de olhos de poço negro e fundo, faz calar a festa, a música, a voz que guiava os dançarinos, a alegria. Aqueles olhos foram o primeiro espelho no qual ficou retida face da minha infância. Rodopiando pela beira do salão, eis que de repente, todas as pessoas somem como por encanto e vejo-me sozinha com meu espanto e desejo. Coração em disparada. Fascínio total por esse olhar que continua sugando meus pensamentos e minha razão deixando-me inerte como que paralisada numa fotografia que tenta, inutilmente, captar a emoção do momento.

Encapsulada pela surpresa do instante tal como no dia que, desgarrada das mãos de minha mãe, perdida dentre a multidão que caminhava apressada, indiferente à minha angústia e lágrimas, compreendi, pela primeira vez, o significado da palavra solidão.

Aquele estranho de mãos firmes e longas, olhos tristes de entardecer e boca entreaberta como botão de rosa vermelha que roubei do quintal da casa da esquina e cujo espinho fez jorrar, vermelho e quente, o sangue da minha primeira transgressão, parecia ser o guardião de todas minhas histórias: histórias que eu costumava inventar, apenas pelo prazer de cumprir destinos que jamais seriam o meu. Aventuras, amores, descobertas de mundos diferentes e distantes da minha vidinha tão previsível, insípida e indolor. Não sei de quantos instantes é feita a eternidade mas os momentos nos quais ficamos parados, totalmente inertes, como estátuas das brincadeiras nas quais eu adorava paralisar os movimentos e as ações sem sentido daquele grupo de meninos que em comum, só tinha a idade, já valiam pela minha vida inteira: a já vivida e a por vir.

Com as mãos dados, sem nada dizer, pois qualquer palavra quebraria a compreensão e a unidade de um cosmos sem dualidade e tensão, nossos corpos foram se aproximando tentando ficar em consonância com nossas almas que já estavam definitivamente unidas. E então, com os corpos juntos, tão unidos quanto possibilita o ínfimo espaço entre duas palavras, entre dois grãos de areia, nossas bocas entraram em comunhão. Eu, recebendo o sagrado através da saliva de um estranho e entregando, a ele, a minha solidão – marca de nascença - que me empurrava para a margem da vida.

Nossas corações batendo uníssonos, nossos corpos colados, seus braços me segurando firme, nossas colchas aninhadas, seu sexo pulsando vida no meu corpo, que transpirava paixão, morte, ressurreição. Sim, eu me sentida morrendo. Era uma morte doce, calma, corajosa. Silenciosa. Morria em gozo junto com aquele mundo de certezas e amanhãs que repetiriam, ad infinitum o hoje repleto de proteções, seguranças, cores e festas. A vida, a minha vida, explodia sem medidas, como os fogos de artifícios que cruzavam os céus com sons e um arco íris de cores. As labaredas saiam das fogueiras para desenhar profecias no espaço. Fiat lux da história que agora se tornava minha. A minha história de amor.

Não descobri, ainda, de quantos instantes se constitui a eternidade. Só sei que hoje, olhei para o alto e viajei no balão. No mesmo balão que tempos atrás levou consigo os sonhos e a inocência da minha infância. E subindo muito alto, tão alto quanto permitiu as lembranças, fui acendendo pontos escuros da memória como se acendem velas apagadas antes do início dos rituais de celebração. Após, reviver as histórias apagadas pelo tempo, desmanchadas pelas tristezas, alcancei, por meio de em alavantus, anarries e passeios na roça da memória, a altura correta da qual poderia cair. E então, como nada mais precisava ver, desgarrei-me, feliz, do balão e tal qual estrela cadente, fui caindo, caindo, descendo para o hoje.

E foi assim que, voltando a pisar nas terras do presente, vi desaparecer, para sempre, o último balão.

(O conto é parte da antologia Recife conta o São João publicado pela Fundação de Cultura Recife em junho de 2008)